ADÃO E EVA – A PRIMEIRA HUMANIDADE
Criação e evolução: diálogo entre fé e ciência
A ciência diz-nos que o organismo humano é uma conquista da longa evolução a partir do primeiro e mais pequeno ser vivo que poderíamos chamar de bactéria.
É claro que isto foi uma caminhada muito lenta, de transformação que durou milhões de anos, comprovada pelas várias descobertas feitas pelas ciências humanas que se dedicam a esta área: arqueologia, biologia, história, antropologia, paleontologia, etc...
Penso que é preciso fazer um reparo a respeito dos relatos da Criação que estão no Génesis, o primeiro Livro da Bíblia, sobre a formação de Adão e Eva.
Esses relatos não têm a intenção de nos demonstrar nem ensinar qual foi a origem do homem, mas dizer-nos o que é o homem: feito de barro, ou seja, de matéria mortal, vivificada por Deus, ou seja, que começou a ter vida.
Compete à Ciência, descobrir qual é a origem do homem, não à Bíblia.
A Bíblia não é um livro científico, mas religioso que tem, em si, a intenção de nos revelar, de trazer-nos ensinamentos sobre três realidades: quem é Deus, quem é o homem e o que é o mundo.
A verdadeira Ciência não choca, nem pode contradizer, a verdadeira teologia. Ambas complementam-se e interagem porque giram à volta do homem.
A respeito da Criação de Adão e Eva, do Cosmos e do Universo, a Bíblia quer-nos dizer que Deus age sempre e unicamente como Causa Primeira, origem de tudo e não como causa segunda, ou seja, “Deus não fez, nem faz as coisas, mas faz com que as coisas se façam a si mesmas” como dizia Teilhard de Chardin.
Podemos concluir que a hilosfera (a matéria) gera a biosfera (vida), desta nasce a noosfera (mente/intelecto) para alcançar a logosfera (razão cósmica/espírito consciente). Cientificamente ainda não se demonstrou como foi o processo da passagem de uma esfera para a outra. No entanto, sabe-se que da matéria surgiu a vida, e desta nasce o espírito, ou seja, a parte espiritual, o que a Bíblia chama de ‘sopro vital’ inalado por Deus nas narinas de Adão que, no fundo, é aquilo que identifica e diferencia o ser humano do resto da Criação. Assim consagra-se e estabelece-se o fio de ligação entre a Ciência e a Teologia no que diz respeito à teoria da evolução criadora.
Deus cria pelo poder da Sua Palavra (Gn 1, 1)
O “espírito de Deus pairava sobre as águas”… o espírito (‘ruah’), partilha das mesmas caraterísticas dinâmicas dos conceitos ‘palavra’ (‘dabar’) e ‘sabedoria’ (‘hokhmah’). Assim, o ‘espírito de Deus’ apresenta a sua presença e ação nos cosmos (universo), bem como na vida das pessoas. Por exemplo, Eliseu recebe o espírito de Elias (2 Rs 2). Esse ‘espírito que paira sobre as águas’ parece querer afirmar que o Espírito Santo de Deus estava presente desde o início como força fecunda de vida nas águas presidindo à criação, derramando-se na abundância do dilúvio e fazendo renascer nas águas amnióticas do batismo. A iniciativa de Deus mudou o caos (desordem) em terra e o abismo em cosmos (céus/firmamento/ordem/beleza).
A força criadora de Deus assenta na Sua Palavra (‘dabar’), assumindo uma dupla dimensão: cria e ao mesmo tempo, revela a intimidade de Deus e do Seu desígnio. É por isso que, na tradição sapiencial, a Palavra criadora é vista como “sabedoria personificada”, porque a Sabedoria, ao mesmo tempo que cria e transforma, revela o sentido (cf. Prov. 8).
Façamos o ser humano à nossa Imagem e Semelhança (Gn 1, 26. 2, 18)
O ‘façamos’ de Deus poder-nos-ia levar a pensar no Deus-Trindade, mas trata-se apenas do plural majestático, de uma forma de escrever em que a pessoa do rei assume um ‘nós’ que revela que a sua vontade dá-lhe poder de agir e realizar o que quiser.
Partimos do princípio verdadeiro que quando a bíblia fala do ser humano abarca a vida biológica e a vida espiritual na sua totalidade à luz da fé na revelação divina. Assim, após o ter formado o homem (adam) do pó da terra (adamáh) de forma autónoma e distinta da mulher, insuflou-lhes seu espírito, e coloca-os no jardim para o cultivar e guardar. Significando com isto que o ser humano é ser mortal (carnal), frágil, pó da terra, e ao mesmo tempo espírito (dinamismo vital). O autor sagrado ao precisar o momento de Deus insuflar o seu espírito no ser humano quer fazer três afirmações de fé:
A vida é um dom gratuito de Deus;
A sua dignidade reside no mistério de ser imagem e semelhança de Deus;
Todo o ser humano é Pessoa, ou seja, com capacidade de comunicar, relacionar-se, ser interlocutor com Deus.
A história da costela… Eva nasce do sono do homem. A palavra hebraica ‘șëlâ’ é única no livro do Génesis 2, 21-22, mas ocorre 14 vezes no livro do Êxodo e tem muitos significados, mas o sentido cultural mais adequado é “ao lado de”, dando a entender que se trata o lugar da mulher é ao lado do homem e que são iguais em dignidade.
O Sábado (Gn 2,1-4)
No sétimo dia Deus encerrou a obra da criação, aplicando-lhe o remate final ao abençoar e santificar esse dia, tornando-o benéfico para a humanidade, como dia de descanso, onde toda a Criação louva o Criador (Gn2, 1-3). Neste texto sagrado não aparece a palavra hebraica ‘sabbat’ e por isso, não se trata da instituição original do sábado. Segundo a Tradição sacerdotal, o sétimo dia baseia-se na criação do mundo, ao passo que a instituição do sábado, como dia dedicado a Deus, fundamenta-se em Êxodo 20, 8-11; 31, 13-17. Com esta afirmação o autor bíblico quer refutar a crença supersticiosa assírio-babilónica em que os dias 7, 14, 21 e 28 de cada mês eram agoirentos, porque as fases da lua anunciavam a morte do mês lunar. Esta superstição foi destruída pela fé na eficácia da bênção divina que se recebia no culto religioso, onde o sacerdote da liturgia é o intermediário entre Deus e os fiéis.
O sábado como dia sagrado acontece sobretudo após o exílio da Babilónia. Depois do exílio, sem identidade, sem monarquia, fixaram-se no Templo e na Lei com as suas obrigações. Entre estas sobressai o sábado, a circuncisão, a proibição de casamentos mistos e as leis do Kosher (significa “próprio” para consumo). O sábado tornou sagrado devido à necessidade do estudo e catequese sobre as tradições centradas na Lei (Pentateuco), nos Profetas e para poderem orar convenientemente. Assim, o primeiro relato da criação, mais elaborado, pertence à escola sacerdotal: está centrado à volta da sacralidade do sábado, com o refrão litúrgico: “e Deus viu que era bom”, não há nem Adão nem Eva, apenas o ser humano deve “crescer e multiplicar-se para encher e dominar a terra”, não há Éden, nem pecado.
As árvores no centro do Jardim (Gn 2, 9-17)
Na antiga suméria existia um jardim anexo ao templo da divindade protetora da cidade, o qual destinava-se unicamente ao lazer da divindade, do rei e sua consorte. Assim, Adão e Eva não são estranhos, mas foram elevados ao status nobre da família real e divina, onde se faz a menção de ouro puro, pedras preciosas e incenso (Gn 2, 11-12). O convívio no jardim permite-lhes usufruir a proximidade de Deus.
O segundo relato da criação é mais antigo que o primeiro e onde há o mandamento divino de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2, 17).
A flora do jardim é constituída por árvores do fruto, o que nos leva a pensar num pomar. No centro do jardim/pomar estão duas muito especiais: a árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal. Parecem significar as duas grandes sedes que estão plantadas dentro da alma humana: a sede de imortalidade (árvore da vida) e a sede de conhecimento absoluto, totalidade (bem e do mal).
O ser humano desde sempre viveu à sombra de árvores que testemunharam cultos sagrados, heranças culturais, ritos de fertilidade, costumes sociais, alianças políticas e religiosas… lembremos o carvalho de Mambré de Abraão, símbolo da hospitalidade (Gn 18). O autor javista parece querer dizer que a ciência do bem e do mal trata-se do poder de decidir por si mesmo o que é bom e o que é mau. É a criatura prescindir do criador e agir de acordo com os seus apetites e caprichos.
Conclusão
Às ciências compete a questão da origem do homem; à religião é confiado a tarefa de desvendar o sentido do homem, que deve a sua existência e conservação a um ato de amor da parte de Deus. O motivo pelo qual o homem está posto no mundo é ser ele um misterioso compêndio do universo e recompilando-o em si mesmo referir toda a criação Àquele que a criou.